Um dia desses no passado simbólico da lembrança de um brasileiro comum, carioca, trabalhador, presenciando um ato cotidiano que nós legitimamos quando nos calamos diante da pena de morte que silenciosamente acontece nas esquinas das ruas da cidade. Esta lembrança é um fato histórico, faz parte da memória subjetiva de um outro, mas que permeia a nossa mentalidade, está presente no senso comum, se faz fato a partir do momento que podemos conceber como realidade de qualquer cotidiano de uma grande metrópole. E assim proseguimos escavando a memória individual para compreender o mundo que criamos no nosso cotidiano de hoje.Um dia baldio de um mês qualquer nos anos de mil novescentos e noventa e alguma coisa, um homem sozinho tenta de forma frustrada assaltar uma farmácia dentro do shopping Rio Sul, na zona sul da cidade. Ai sair correndo pela entrada do shopping o homem é perseguido por um policial militar, que holywoodianamente sai a captura do bandido em meio a luz do dia, tendo como platéia deste espetáculo o cidadão comum, carioca, urbano, perfumado, com suas grifes que vestem seus corpos e consecutivamente garantem sua inclusão e cidadania na sociedade do consumo.Esta platéia logo se alvoroça, extasiada, de forma sádica e como que identificados coletivamente com a vítima do assalto, sentem-se agredidos pois, nestas horas percebemos que o imaginário social está presente. Todos começam a querer linchar o bandido. Há algo que precisamos observar nesta situação. A crise da pós-modernidade é uma das causas deste fenômeno. A falência das grandes visões de mundo, tanto religiosas (cristianismo) quando políticas (socialismo e capitalismo), causam esta orfandade existencial onde as pessoas tendem a apergar-se a qualquer coisa que proporcione este sentimento de coletividade perdida nesta época onde os pensamentos e as paxões são líquidas. Quando presenciamos a vitória do mocinho sobre o bandido, sentimos como se todos fôssemos salvos juntamente à vítima que estava lá, atrás do balcão da farmácia. Vivemos a crise da coletividade e saída para esta crise parece ser o sacríficio de bodes e ovelhas simbolizados na figura do marginal urbano.Diante do carnaval que se formou naquele momento, o policial se encontra diante de um dilema. O clamor coletivo pede o linchamento do bandido, que ali, totalmente excluído de qualquer amparo jurídico e sujeito a insanidade da massa, que urge pelo seu sangue como forma de aplacar a ira de um deus que não é deus se não houver sangue e sacrifício. Mas o policial sabia que não poderia entregar aquele preso a sanha da massa inflamada, ao mesmo tempo em que se instaurou um mal-estar e certo constrangimento em deixar o deus do tempo presente sem seus sangue sagrado. Pendurado em uma corda fina, onde de um lado está o bmo senso e a racionalidade das instituições falidas da nossa sociedade, e do outro, a irracionalidade e o desejo mimético (GIRARD) manifesto na gana pela cabeça do marginal, o policial encontra o meio termo: A luz daquelas pessoas ele conduz o bandido para trás de um beco próximo, e o que desfecho é o som do disparo da sua arma e o alívio dos presentes naquele momento. Ao retornar, nosso herói e sua epopéira urbana, é condecorado pelo sorriso e pela satisfação manifesta no rosto das pessoas e seus cumprimentos, dando a ele o status de herói, que como um Robocop carioca, sai novamente a caça de mais criminosos.Passados dez anos este mesmo policial retorna ao espaço público através da manchete de um jornal. Ele é responsável por balear um passageiro em um táxi em plena luz do dia, durante a perseguição de dois assaltantes em fuga. O motivo do disparo foi que, durante a perseguição, um dos assaltantes tomou uma direção oposta do outro, e o policial não percebendo esta estratégia de fuga, parte em direção daquele que tenta entrar no táxi junto com um passageiro. Ao ver aqueles dois homens no banco de trás, o grande herói dispara sua arma e mata o bandido e um cidadão de bem. Aquele mesmo cidadão que arqueológicamente podemos resgatar na memória daquele fato ocorrido no shopping Rio Sul.Um destes repórteres investigadores resolve trazer a luz aos fatos, escavando aquilo que até então estava omitido em todo este enredo: A identidade do homem morto no primeiro assalto. Aquele, que foi silenciado no beco atrás do shopping. Quem era este homem? Será ele mais um José das Couves? Lembro do moleiro italiano de "O queijo e os vermes", clássico da historiografia contemporânea de Carlo Ginzburg, que retrata através da vida de um moedor de cereais na itália renascentista perseguido pela Inquisição. Ginzburg tenta chegar na Inquisição através da vida de um homem comum. E nós onde pretendemos chegar com essa história?
Pretendemos chegar a uma realidade onde não mais é possível perceber os dualismos que insistimos em sustentar. Todos somos vítimas e assassinos nesta história. Morremos com os filhos das vítimas mas também apertamos os gatilhos das armas que tiram as vidas. Somos leitores e autores de tudo que está ao redor. Somos leitores quando nos identificamos com as vítimas dos crimes, como o assalto da farmácia, assim como da mesma forma, somos autores de assassinatos feitos por policiais, feitos justiceiros como nas HQs por nosso desejo de vingança coletiva. E tudo isto de forma silenciosa e bárbara, empurra para debaixo do tapete um mundo de possibilidades de compreender a realidade da vida. E tudo isso incomoda muito quando descobrimos, como Ginzburg, outras formas de recuperar o passado. ´
O repórter curioso, que fuçou a vida daquele primeiro bandido, descobriu um mundo que nós não queremos ver. Aquele homem até o instante da prisão e morte pelas mãos do policial, não possuía sequer ficha na polícia. Estava desempregado com o filho doente em casa. Não vou aqui justificar o assalto e nem tecer qualquer tipo de julgamento. Para este trabalho existe um tipo de profissional que surgiu na antiga Galiléia, no primeiro século, onde homens de família gostavam de jogar pedras em prostitutas sem família.
E nestes dias a mídia trouxe mais uma vez a história de uma morte que novamente, alimenta nosso desejo por sangue e sacrifício. Entra em cena a razão institucionalizada, cumprindo seu papel de fazer a roda rodar, através da perícia que irá escavar até mesmo os pelos dos gatos que morreram do coração por passarem no local no momento exato dos disparos. Também serão examinadas as penas dos pombos e o sangue das formigas esmagadas no coturno dos policias. Tanta ciência e razão para anestesiar o nosso desejo de reconciliação inalcançável.
Por trás da morte deste menino existe um universo de realidades que precisamos encarar. A justiça cega e perdida diante de laudos de laboratório e da jogatina política do Estado, irá agora, como nos outros casos, se esforçar a fim de satisfazer o desejo de sangue e sacrifício exigido pelo deus do tempo presente, que vive e se manifesta em cada um de nós.
(Carlos Henrique).