14 setembro, 2011

Quanto aos Tomés

Somos todos certezas e dúvidas. Não há quem nunca duvidou de algo, como também não há aquele que nunca gozou de certeza alguma. Momentos houve que tivemos certezas de nossas dúvidas e até mesmo duvidamos de nossas certezas. Andamos no fio da navalha como quem anda por uma estrada larga e, por isso, tem em conta os pés folgados. E é aqui que percebemos que nossas dúvidas são, na verdade, a falta de controle, seja ele literal ou psicológico, sobre determinados momentos e situações. Daí então resulta não encararmos com demasiado escândalo aquele que pede contas até mesmo a Deus de seus temores duvidosos, de suas esperanças desesperançadas em virtude do calor do tormento. Esse não é o nosso grande problema. É apenas um grito de um gesto sem artifícios e até mesmo sem pudor, em face daqueles que porventura estejam perto, que pede ajuda através da dúvida, como quem diz: quero de verdade ter certeza. Isso! A boa e verdadeira dúvida só quer conhecer e nada mais. Não se trata de desconstruir aquilo ou aquele a quem se pergunta: És tu mesmo?, e que no fundo só o queria que fosse.
É o senhor mesmo, Jesus?, perguntou Tomé. Sim, Tomé. Sou eu! – disse Jesus. Uma mescla de certeza e dúvida pululam a mente e o coração de Tomé. O coração diz: eu senti, é ele mesmo. Não vês a doçura desse olhar? A mente retruca: não te lembras do seu corpo sem vida sobre o madeiro e depois de seu repouso último naquela cova fria? Tomé decide então ir para além das afirmações que seu coração e mente lhes fizera. Ele pede: se és tu mesmo, deixa eu tocar nas suas chagas. E assim foi. Tomé tocou-lhe as chagas e teve a certeza de sua dúvida. Era o mesmo que morreu e que agora aparecera vivo. E a despeito da adjetivação... homem de pouca fé, que precisa ficar claro, não foi dito carregado de desdém ou desprezo, pois a atitude seguinte desmente a impressão (ou pelo menos a contradiz), o mestre não lhe subtrai essa conferência. Ele da as chagas à prova como quem sabe que aquele momento era necessário para seu querido Tomé.
Abrindo um pequeno parêntese, Jesus nunca disse a ninguém: homem de muita fé. Quando muito ressaltou a singularidade da fé de um ou de outro que, diga-se de passagem, não eram de pessoas ligadas à fé judaica.
Tomé só deixou vazar a dúvida que todos tinham. Não estavam todos encolhidos e escondidos? Algum deles chegou de braços dados com o mestre dizendo: __viu ele está vivo? A coragem de Tomé foi a mesma de Pedro, que pediu para andar sobre as águas e, por naufragar, foi chamado de homem de pouca fé, apesar de todo o resto dos discípulos estarem cheios de fé entocados dentro de um barco chicoteado pelo vento.
Melhor um Tomé com coragem de assumir sua dúvida do que o monte de homens cheios de uma certeza embrulhada e tímida. Não serve a nada. Dentre aquele monte de discípulos, o único adjetivado de “homem de pequena fé” é o que toca o mestre depois da ressurreição, coisa que ninguém mais fez.
Equívoco mesmo é deixar a dúvida ser para sempre dúvida.

20 janeiro, 2011

POR UM "PAI NOSSO" MAIS PROFUNDO

Não há muito que dizer num momento desses. Há apenas essa sensação de perda para todos nós; uma dor que irradia e se avizinha por todo Brasil, como se as vidas que se perderam fossem pessoas do nosso círculo de parentes ou de amigos mais íntimos. Mas na verdade são. São filhos do mesmo Pai... aquele que invocamos no Pai Nosso, que dividiram, enquanto estiveram conosco, a esperança do mesmo Reino; que compartilharam a necessidade e a providência do mesmo pão; que sonhavam com o perdão libertador/reconciliador; que desejavam longe toda e qualquer forma de mal que pudesse assolar suas vidas, fosse o mal moral, fruto de uma liberdade mal direcionada; fosse o mal natural, aquele que se encontra no limite de uma existência e de um mundo finitos. Não compreender a profundidade e as implicações dessa reza/oração mostraria a quanto tempo estamos apenas papagaiando-a, pois além de nos situar numa nova relação com Deus, agora denominado pelo vocativo "papaizinho", ela também revela a qualidade de uma nova relação que devemos viver entre nós: uma irmandade.
Por isso não só as famílias das regiões atingidas estão de luto. Diante dessa tragédia, toda comunidade mundial deve enlutar-se, pois irmãos e irmãs que a distância não nos permitiu conhecer partiram abruptamente. A todos eles o respeito de nosso luto, como enlutado se encontra também o nosso Pai, que os criou para a vida e vida em abundância. Contudo, ainda há irmãos e irmãs pelos quais podemos fazer alguma coisa. Aqueles se encontram desalojados e necessitados de tudo e principalmente de serem acolhidos pela força de nossa solidariedade. A solidariedade é isso. É sinal dessa pertença familiar constituída na oração do Pai Nosso. Por isso mesmo, quando agimos movidos por essa solidariedade, agimos na força dessa fraternidade constituinte do mais íntimo de cada um de nós e que, nesses momentos trágicos da vida, lembrando dos irmãos, ao mesmo tempo lembramos dessa filiação a qual todos, pela graça da adoção, pertencemos: somos filhos do Pai.
Façamos novamente essa oração tão conhecida no mundo todo. Mas a façamos de uma maneira mais pragmática, mais concreta. Oremos compartilhando o pão que o Pai já enviou a nós, agora interpretado como mantimentos, roupas, colchões, água, material para a higiene, limpeza etc. Certamente essa terá sido a maneira mais concreta e mais sincera que essa oração já fora orada, de vez que a melhor oração é amar. E nessa forma de orar/rezar, na cooperação possível por nossa solidariedade, mediação indispensável para Deus, oramos todos juntos, nós e o Pai, consolando e socorrendo nossos irmãos e irmãs que foram tragados por essa tragédia. E nisso se realiza a resposta tão esperada por quem ora a oração do Pai Nosso: quando socorremos os Irmãos Nossos que estão na Terra.

15 setembro, 2010

No Sale!

No mundo tudo tem seu preço. Parece que não há nada que não tenha a possibilidade de ser mais um item de prateleira a espera de um comprador em potencial. Da natureza ao sagrado, tudo tem sido atravessado pelo processo de mercadorização, chegando ao ponto das relações humanas sofrerem esse mesmo efeito imposto à ordem das coisas. Daí varia. Há aqueles que se colocam a venda, como também há aqueles que se mostram dispostos a comprar. Diferentemente dos objetos, que são sacados do seu meio para tornarem-se mercadoria, os homens que assim se portam, colocam-se a disposição para comprar ou para vender, dependendo apenas da conveniência por trás do negócio. É de fato a comoditização do humano no mercado das relações utilitárias. A pessoa “mercadorizada” só vale como bem de consumo e nada mais.
Isso não é nada novo. No passado não muito distante, até títulos religiosos foram vendidos a famílias nobres das sociedades. Por um bom preço se poderia ocupar um bom cargo eclesiástico. O que parece não estar muito longe de nós, a ponto de não ocorrer mais. Hoje talvez não se venda pelo dinheiro de nossas relações comerciais de praxe, mas se vende por apoio na moeda de um comprometimento incondicional; de um sim sempre dito, mesmo com o gosto do não na boca. Uma corrupção silenciosa, mas amarga.
Mas que bom que a relação com o doce carpinteiro não se funda sobre o pressuposto do utilitarismo comercial. É graça apenas! É dadivosidade! Lava nossos pés e não nos cobra o serviço; nos dá de comer, mas não traz a conta; mata a nossa sede, mas não cobra a água oferecida; paga a fiança, advoga nossa causa, liquida com o processo e não nos cobra pelos seus honorários.
Por que não aprendemos essas lições e desistimos de colocar preço para que as pessoas estejam conosco ou para que estejamos com elas? Por que ainda insistimos em orçar as pessoas em função daquilo que elas tem ou podem dar? Bem, fica aqui apenas um alerta para mim, que escrevo, e para você que lê. Para o carpinteiro Deus, ou para o Deus carpinteiro, como você quiser, o homem não tem preço, tem apenas valor. Mas não um valor flutuante de mercado, que hoje pode estar alto e amanhã não. Para Deus não há recessão afetiva, por isso o valor do outro é sempre maior, a ponto de hipotecar-se numa cruz como conseqüência da valorizar aqueles que muitos desejavam falidos.

02 setembro, 2010

Do culto alienante ao culto da vida

Estamos diante do ponto mais candente dos embates de Jesus com as forças heterônomas de seu tempo: o templo e o culto. Antes de entrarmos nesse ponto nevrálgico, devemos entender a função do templo.
Segundo Jon Dominc Crossan:

O templo mediava não apenas a presença de Deus, mas também seu perdão. Era o único local de sacrifício – que é o caminho do perdão. Segundo a teologia do templo, alguns pecados só poderiam ser perdoados e algumas impurezas só poderiam ser tratadas através do sacrifício neste lugar.[...] o templo mediava o acesso a Deus. Estar no templo, purificado e perdoado, era estar na presença dele.

Como era de se esperar, milhares de pessoas confluíam para o templo pelo menos uma vez por ano para o ritual dos sacrifícios. Era o centro de devoção de todo povo. O coração religioso da nação Israelita. Entretanto, o templo se tornou motivo de exploração e seu culto se torna alienante.
Estavam ligados ao templo, segundo Rinaldo Fabris:

... grupos ou classe sacerdotais e, em particular, as grandes famílias de Jerusalém, sacerdotais ou leigas, cujo o prestígio social e fortuna estavam vinculados a função religiosa do tempo.

O culto era o grande eixo econômico para a cidade de Jerusalém. Pelo menos dois dízimos eram entregues nesta casa. Um de cunho obrigatório, e o outro que o religioso devia gastar em Jerusalém. Era proibido gastar esse último dízimo noutro lugar que não a cidade de Jerusalém. Havia o interesse direto da aristocracia judaica, já que esta vivia e engordava a custa da exploração religiosa e a miséria do povo.
Jesus, porém, se coloca contra esse estratagema absurdo. A tradição sinótica cita dois grandes momentos de conflito entre Jesus e templo, em função desse culto idolátrico. Em um deles Jesus expulsa os cambistas – um templo instrumentalizado para a cobertura e álibi religioso da injustiça (Mc 11, 15); em outro ele anuncia profeticamente a destruição do templo (Mc 13, 2).
Como os profetas no passado, Jesus denuncia o culto deturpado e corrompido, que pensa que pode manobrar a Deus, substituindo a entrega real a ele por meio de ações que almejam assegurar o seu favor.

Jesus muda o conceito de culto. Se prestar culto a Deus significa honrá-lo, o que honra a Deus não é a submissão do homem, senão a semelhança do homem com ele, como a do filho do Pai.

Trocando em miúdos, o que Deus quer é um culto que transborde em todas as direções e não apenas um evento com dia e hora marcados. Tornar-se semelhante, nesta perspectiva, significa entregar-se ao dinamismo de amor, uma vez que Deus é amor. Se doar para buscar o bem que a todos atinja, esse é o grande culto. Além disso, a prática desse culto não reclama um espaço sagrado. Ele se realiza na vida, ininterruptamente. Vida animada pelo amor: esse é o culto.
Glauco Kaizer

23 agosto, 2010

Um novo critéio

Do Sábado à misericórdia

Não lestes o que fez Davi quando passava necessidade, e estavam famintos ele e seus companheiros? Entrou na casa de Deus, sendo o sumo sacerdote Abiatar, e comeu os Paes apresentados (que somente os sacerdotes podem comer) e repartiu com seus companheiros. E acrescentou: o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado (Mc 2, 25-17).
Jesus não prescinde da lei por nenhum sentimento de desprezo. Trata-se de um descumprimento fundamentado na solidariedade ante a premência da vida. Rinaldo Fabris faz a seguinte afirmação sobre esses eventos: a transgressão do sábado não é intencional nem provocadora, mas subordinada à atividade de Jesus (curas) e às necessidades dos discípulos.
Com efeito, Jesus oferece um novo critério para julgar o sábado.
Jesus é autônomo ante a lei quando esta atenta contra a vida; é autônomo quando, contra a prática, apoiada na lei religiosa, que proibia as relações como pessoas de má fama, como os coletores de impostos e descrentes
, se relacionava com estes, negando dessa maneira o preconceito social. E se já não fosse o bastante o relacionar-se com tais figuras, eles os convidava a fazer parte de seu grupo, acolhendo-os como são e como irmãos e irmãs. (Mc 2, 14-17).
Quando Jesus decide representar sua própria compreensão dos fatos e dá-los a um rumo diferente, ele o faz por meio de sua experiência com o Pai e do exercício autônomo de sua experiência histórica; para consentir que um evento seja tratado de maneira diferente daquele que o cânones apontam, ele experimenta sua própria razão inscrita em sua autonomia, que por sua vez é a liberdade fundamental do ser mediatizada por fatos históricos, i. é, uma liberdade historicizada.
O esforço libertador de Jesus se concentra na libertação ideológica do povo. De fato,muito mais profunda que a submissão ao poder romano,gênero de opressão evidente para todos, era a opressão criada pela ideologia religioso-política que se apresentava com o aval da autoridade do próprio Deus.

Essas ideologias além se arrogarem o controle do humano, o que já é em si um fator negativo e atroz, vinham chanceladas pelo suposto mandato divino, o que piora enormemente a situação. E nome de Deus se praticava a marginalização; em nome de Deus era exigida submissão cega a interpretação da Lei proposta pelos dirigentes; em nome de Deus incutiam a culpa e a indignidade perante Deus; em nome de Deus celebravam um culto alienante e explorador e em nome de Deus impedia-se toda liberdade e iniciativa, tornando impossível o desenvolvimento do humano. Enfim, em nome de Deus se fazia tudo o que, notadamente por Jesus, não convinha a Deus. Além disso induziam à idolatria, já que incutiam no imaginário popular uma idéia de Deus que sequer passa perto de ser verossímil.

10 julho, 2008

Arqueologia da barbárie...e outras doenças.

Um dia desses no passado simbólico da lembrança de um brasileiro comum, carioca, trabalhador, presenciando um ato cotidiano que nós legitimamos quando nos calamos diante da pena de morte que silenciosamente acontece nas esquinas das ruas da cidade. Esta lembrança é um fato histórico, faz parte da memória subjetiva de um outro, mas que permeia a nossa mentalidade, está presente no senso comum, se faz fato a partir do momento que podemos conceber como realidade de qualquer cotidiano de uma grande metrópole. E assim proseguimos escavando a memória individual para compreender o mundo que criamos no nosso cotidiano de hoje.Um dia baldio de um mês qualquer nos anos de mil novescentos e noventa e alguma coisa, um homem sozinho tenta de forma frustrada assaltar uma farmácia dentro do shopping Rio Sul, na zona sul da cidade. Ai sair correndo pela entrada do shopping o homem é perseguido por um policial militar, que holywoodianamente sai a captura do bandido em meio a luz do dia, tendo como platéia deste espetáculo o cidadão comum, carioca, urbano, perfumado, com suas grifes que vestem seus corpos e consecutivamente garantem sua inclusão e cidadania na sociedade do consumo.Esta platéia logo se alvoroça, extasiada, de forma sádica e como que identificados coletivamente com a vítima do assalto, sentem-se agredidos pois, nestas horas percebemos que o imaginário social está presente. Todos começam a querer linchar o bandido. Há algo que precisamos observar nesta situação. A crise da pós-modernidade é uma das causas deste fenômeno. A falência das grandes visões de mundo, tanto religiosas (cristianismo) quando políticas (socialismo e capitalismo), causam esta orfandade existencial onde as pessoas tendem a apergar-se a qualquer coisa que proporcione este sentimento de coletividade perdida nesta época onde os pensamentos e as paxões são líquidas. Quando presenciamos a vitória do mocinho sobre o bandido, sentimos como se todos fôssemos salvos juntamente à vítima que estava lá, atrás do balcão da farmácia. Vivemos a crise da coletividade e saída para esta crise parece ser o sacríficio de bodes e ovelhas simbolizados na figura do marginal urbano.Diante do carnaval que se formou naquele momento, o policial se encontra diante de um dilema. O clamor coletivo pede o linchamento do bandido, que ali, totalmente excluído de qualquer amparo jurídico e sujeito a insanidade da massa, que urge pelo seu sangue como forma de aplacar a ira de um deus que não é deus se não houver sangue e sacrifício. Mas o policial sabia que não poderia entregar aquele preso a sanha da massa inflamada, ao mesmo tempo em que se instaurou um mal-estar e certo constrangimento em deixar o deus do tempo presente sem seus sangue sagrado. Pendurado em uma corda fina, onde de um lado está o bmo senso e a racionalidade das instituições falidas da nossa sociedade, e do outro, a irracionalidade e o desejo mimético (GIRARD) manifesto na gana pela cabeça do marginal, o policial encontra o meio termo: A luz daquelas pessoas ele conduz o bandido para trás de um beco próximo, e o que desfecho é o som do disparo da sua arma e o alívio dos presentes naquele momento. Ao retornar, nosso herói e sua epopéira urbana, é condecorado pelo sorriso e pela satisfação manifesta no rosto das pessoas e seus cumprimentos, dando a ele o status de herói, que como um Robocop carioca, sai novamente a caça de mais criminosos.Passados dez anos este mesmo policial retorna ao espaço público através da manchete de um jornal. Ele é responsável por balear um passageiro em um táxi em plena luz do dia, durante a perseguição de dois assaltantes em fuga. O motivo do disparo foi que, durante a perseguição, um dos assaltantes tomou uma direção oposta do outro, e o policial não percebendo esta estratégia de fuga, parte em direção daquele que tenta entrar no táxi junto com um passageiro. Ao ver aqueles dois homens no banco de trás, o grande herói dispara sua arma e mata o bandido e um cidadão de bem. Aquele mesmo cidadão que arqueológicamente podemos resgatar na memória daquele fato ocorrido no shopping Rio Sul.Um destes repórteres investigadores resolve trazer a luz aos fatos, escavando aquilo que até então estava omitido em todo este enredo: A identidade do homem morto no primeiro assalto. Aquele, que foi silenciado no beco atrás do shopping. Quem era este homem? Será ele mais um José das Couves? Lembro do moleiro italiano de "O queijo e os vermes", clássico da historiografia contemporânea de Carlo Ginzburg, que retrata através da vida de um moedor de cereais na itália renascentista perseguido pela Inquisição. Ginzburg tenta chegar na Inquisição através da vida de um homem comum. E nós onde pretendemos chegar com essa história?
Pretendemos chegar a uma realidade onde não mais é possível perceber os dualismos que insistimos em sustentar. Todos somos vítimas e assassinos nesta história. Morremos com os filhos das vítimas mas também apertamos os gatilhos das armas que tiram as vidas. Somos leitores e autores de tudo que está ao redor. Somos leitores quando nos identificamos com as vítimas dos crimes, como o assalto da farmácia, assim como da mesma forma, somos autores de assassinatos feitos por policiais, feitos justiceiros como nas HQs por nosso desejo de vingança coletiva. E tudo isto de forma silenciosa e bárbara, empurra para debaixo do tapete um mundo de possibilidades de compreender a realidade da vida. E tudo isso incomoda muito quando descobrimos, como Ginzburg, outras formas de recuperar o passado. ´
O repórter curioso, que fuçou a vida daquele primeiro bandido, descobriu um mundo que nós não queremos ver. Aquele homem até o instante da prisão e morte pelas mãos do policial, não possuía sequer ficha na polícia. Estava desempregado com o filho doente em casa. Não vou aqui justificar o assalto e nem tecer qualquer tipo de julgamento. Para este trabalho existe um tipo de profissional que surgiu na antiga Galiléia, no primeiro século, onde homens de família gostavam de jogar pedras em prostitutas sem família.
E nestes dias a mídia trouxe mais uma vez a história de uma morte que novamente, alimenta nosso desejo por sangue e sacrifício. Entra em cena a razão institucionalizada, cumprindo seu papel de fazer a roda rodar, através da perícia que irá escavar até mesmo os pelos dos gatos que morreram do coração por passarem no local no momento exato dos disparos. Também serão examinadas as penas dos pombos e o sangue das formigas esmagadas no coturno dos policias. Tanta ciência e razão para anestesiar o nosso desejo de reconciliação inalcançável.
Por trás da morte deste menino existe um universo de realidades que precisamos encarar. A justiça cega e perdida diante de laudos de laboratório e da jogatina política do Estado, irá agora, como nos outros casos, se esforçar a fim de satisfazer o desejo de sangue e sacrifício exigido pelo deus do tempo presente, que vive e se manifesta em cada um de nós.

(Carlos Henrique).

23 junho, 2008

A VIDA E A MORTE NA DANÇA DO SEM SENTIDO

Por Glauco Kaizer

Enquanto os “grandes” líderes mundiais investem trilhões de dólares na indústria da morte (fabricação de armas e afins), milhares de pessoas em todo mundo são inapelavelmente dizimadas pela fome. Segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, o aumento nesse nefasto investimento chegou à monta de 1,34 trilhões. E nesse fúnebre mercado, o USA segue líder no ranking da venda e da manutenção da morte. Soma-se ainda o fato de que a maioria das nações que infelizmente participam desse ranking são “cristãs”, i.e., tem Jesus Cristo como fundamento de sua fé (Bem aventurados os pacificadores...).
Vivemos na era da barbárie e do sem sentido. Quem poderia pensar que presenciaríamos a banalização completa da vida em função do interesse inescrupuloso de uma minoria ensandecida pelo projeto do capital?
Na dança do sem sentido, vivos e mortos não se distinguem. Uns porque já descansam à sombra da morte; outros por fazerem sombra para morte, que tranquilamente descansa em cada consciência que finge não percebê-la.